quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Vamos refletir?

"NOIS MUDEMO"


O ônibus da Transbrasiliana deslizava manso pela Belém-Brasília rumo a Porto Nacional. Era abril, mês das derradeiras chuvas. No céu, uma luazona enorme pra namorado nenhum botar defeito. Sob o luar generoso, o cerrado verdejante era um presépio, toda poesia e misticismo.
Mas minha alma estava profundamente amargurada. 0 encontro daquela tarde, a visao daquele jovem marcado pelo sofrimento, precocemente envelhecido, a crua recordação de um episódio que parecia tao banal. .. Tentei dormir. Inútil. Meus olhos percorriam a paisagem enluarada, mas ela nada mais era para mim que o pane de fundo de um drama estúpido e trágico.
As aulas tinham começado numa segunda-feira. Escola de periferia, classes heterogêneas, retardatários. Entre eles, uma criança crescida, quase um rapaz.
-Por que voce faltou esses dias todos?
-E ue nois mudemo onti, fessora. Nóis veio da fazenda.
Risadinhas da turma.
-Não se diz nóis mudemo", menino! A gente deve dizer: "nós mudamos, ta?
-Ta, fessora!
No recreio, as chacotas dos colegas: "Oi, nóis mudemo!" "Até amanhã, nóis mudemo!" No dia seguinte, a mesma coisa: risadinhas, cochichos, gozações.
-Pai, nao vo mais pra escola!
-Oxente! Modi que?
Ouvida a história, 0 pai coçou a cabeça e disse:
-Meu fio, num deixa a escola por uma bobagem dessa! Não liga pras gozaçoes da meninada! Logo eles esquece.
Nao esqueceram.
Na quarta-feira, dei pela falta do menino. Ele não apareceu no resto da semana, nem na segunda-feira seguinte. Ai me dei conta de que eu nem sabia o nome dele. Procurei no diário de classe e soube que se chamava Lucio -Lucio Rodrigues Barbosa. Achei o enderego. Longe, um dos ultimos casebres do bairro. Fui lá, uma tarde. 0 rapazola tinha partido no dia anterior para a casa de um tio, no sui do Para.
-E, professora, meu fio não aguentou as gozaçao da meninada. Eu tentei faze ele continua, mas nao teve jeito. Ele tava chateado demais. Bostã de vida! Eu devia di te ficado na fazenda coa famia. Na cidade nóis nao tem veis. Nóis fala tudo errado.
Inexperiente, confusa, sem saber o que dizer, engoli em seco e me despedi.
O episódio ocorrera há dezessete anos e tinha caído em total esquecimento, ao menos de minha parte.
Uma tarde, num povoado a beira da Belém-Brasília, eu ia pegar ônibus, quando alguém me chamou. Olhei e vi, acenando para mim, um rapaz pobremente vestido, magro, com aparência doentia.
-0 que e, moço?
-A senhora nao se lernbra de mim, fessora?
Olhei para ele, dei tratos a bola. Reconstitui num momento meus longos anos de
sacerdócio, digo, de magistério. Tudo escuro.
-Não me lembro não, moço. Você me conhece? De onde? Foi meu aluno? Como se chama? Para tantas perguntas, uma resposta lacônica:
-Eu sou "Nóis mudemo", lembra?
Comecei a tremer.
-Sim, moço. Agora lembro. Como era mesmo seu nome?
-Lucio -Lucio Rodrigues Barbosa.
-0 que aconteceu com você?
-0 que aconteceu? Ah! fessora! E mais facil dize o que nao aconteceu. Comi o ^pão que o diabo amasso. E eta diabo bom de padaria! Fui garimpeiro, fui boia-fria, um "gato" me arrecadou e levou num caminhão pruma fazenda no meio da mata. Lá trabaiei como escravo, passei fome, fui baleado quando consegui fugi. Peguei tudo quanta e doenlça. Até na cadeia já fui para. Nóis ignorante as veis fais coisa sem quere faze. A escola fais uma farta danada. Eu não devia de te saido daquele jeito, fessora, mas não aguentei as gozaçao da turma. Eu vi logo que nunca ia consegui fala direito. Ainda hoje não sei.
-Meu Deus!
Aquela revelalção me virou pelo avesso. Foi demais para mim. Descontrolada, comecei a soluçar convulsivamente. Como eu podia ter sido tão burra e má? E abracei o rapaz, o que restava do rapaz, que me olhava atarantado.
O ônibus buzinou com insistência. 0 rapaz afastou-me de mim suavemente.
-Chora não, fessora! A senhora nao tem curpa.
-Como? Eu nao tenho culpa? Deus do céu!
Entrei no ônibus apinhado. Cem olhos eram cem flechas vingadoras apontadas
para mim. 0 ônibus partiu. Pensei na minha sala de aula. Eu era uma assassina a caminho da guilhotina.
Hoje tenho raiva da gramática. Eu mudo, tu mudas, ele muda, nós mudamos, mudamos, mudaamoos, mudaaamooos... Superusada, mal usada, abusada, ela uma guilhotina dentro da escola. A gramática faz gato e sapato da língua materna -a lingua que a crianlça aprendeu com seus pais, irmãos e colegas -e se toma o terror dos alunos. Em vez de estimular e fazer crescer. comunicando. ela reprime e oprime, cobrando centenas de regrinhas estúpidas para aquela idade.
E os Lúcios da vida, os milhares de Lucios da periferia e do interior, barrados nas salas de aula: "Não é assim que se diz, menino!" Como se o professor quisesse dizer: "Você está errado! Os seus pais estão errados! Seus irmãos e amigos e vizinhos estão errados! A certa sou eu! Imite-me! Copie-me! Fale como eu! Você não seja você! Renegue suas raízes! Diminua-se! Desfigure-se! Fique no seu lugar! Seja uma sombra! E siga desarmado pelo matadouro da vida..." (Fidencio Saga)

Essa história mostra que o olhar do professor em relação à variação linguística é determinante para a vida de cada educando.
No texto de Fidêncio Braga o menino desistiu da escola porque disse "Nóis mudemo" e foi corrigido pela professora e sentiu-se humilhado com as gozações dos colegas. Acabou abandonando os estudos e não teve muitas oportunidades em sua vida.
Assim, é na sala de aula que o professor não só encontrará a diversidade linguística, mas também a religiosa, a cultural, a social, a econômica, entre outras.É nesse ambiente que o professor tem o desafio de contemplar a variação linguística de maneira adequada, livre de preconceitos em meio ao ensino da norma culta.
Dessa forma, a escola tem o papel de expandir o discurso do aluno para que ele saiba assumir a palavra e produzir textos - orais e escritos - coerentes, coesos, adequados à situação comunicativa.

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